A julgar
pelo corpo que temos, somos uma espécie que deveria ter desaparecido da
face da Terra milhares de anos atrás. Tudo é desajeitado... Começando pela
pele, delicadinha, que não agüenta nem sol nem frio, não pode ser
comparada nem com os invejáveis casacos dos ursos ou com as sólidas
carapaças ambulantes das tartarugas e tatus. Olhe para suas unhas. Para
que servem, além de ajuntar sujeira, crescer e quebrar? Claro que para
coçar alguma mordida de carrapato, coisa que tem inegável valor erótico,
mas pouco contribui para a sobrevivência. Veja, por contraste, um tatu
cavando o seu buraco. Suas unhas são verdadeiras cavadeiras. Ou os gatos e
parentes felinos, com unhas-navalha que rasgam o couro mais duro. Se sobrevivemos foi
porque descobrimos maneiras de melhorar o corpo. Fomos, aos poucos,
construindo próteses para compensar as faltas, como fazemos dentaduras
para substituir os dentes. Sapatos, roupas, chapéus, facas, enxadas,
óculos, casas, bicicletas e todas as coisas a que damos o nome de técnica
não passam de melhorias e transformações de um corpo desajeitado e fraco,
que morreria se entregue às suas modestas possibilidades físicas. Era uma vez um povo que morava numa montanha, onde havia muitas quedas d'água. Moer o grão nos pilões era uma dureza. Um dia, o moço coberto de suor de tanto trabalhar, olhou para a queda d'água onde se banhava diariamente. E uma idéia o iluminou como um raio: acabava de inventar o monjolo. Foi aquela revolução. Tudo mudou. E logo surgiu um grupo novo de profissionais, mecânicos e especialistas em consertar monjolos. Isto eles faziam melhor que o inventor... Acontece que uma tribo guerreira invadiu a montanha e aquele povo teve de fugir para as planícies a beira-mar. Com muito esforço levaram seus monjolos, indo descobrir que não tinham nenhuma utilidade lá embaixo, já que não havia quedas d'água. Os mecânicos e especialistas perderam o trabalho. E não teve outra saída: voltaram os pilões. O tempo passou. Até que um homem cansado de fazer força viu o vento sacudir as árvores. E, de novo, o milagre aconteceu. Uma iluminação momentânea: nasceu assim o moinho de vento. Nova revolução. Nova classe de mecânicos, especialistas no conserto de moinhos de vento... Há um tipo de
inteligência criadora. Ela inventa o novo e introduz no mundo algo que não
existia. Quem inventa não pode ter medo de errar, pois vai se meter em
terras desconhecidas, ainda não mapeadas. Há um rompimento com velhas
rotinas, o abandono de maneiras de fazer e pensar que a tradição
cristaliza. Pense, por exemplo, no milagre do iglu. Como teria acontecido?
Compreender que aquele espaço é protegido, que é possível usar o gelo para
preservar o calor... Perceber as vantagens estruturais daquela forma de
hemisfério. Fazer uso dos materiais disponíveis. Tudo imensamente simples,
inteligente, adaptado, eficaz. Nenhuma importação é necessária... A gente
encontra o mesmo tipo de inteligência no artista que faz uma obra de arte,
no cientista que visualiza na imaginação uma nova teoria científica, no
político-sonhador que pensa mundos utópicos, considerados impossíveis pelo
mecânico. O criador está convencido de que existe algo de fundamentalmente
errado no que existe e que é necessário começar tudo de novo. Acontece que a
inteligência se parece com sementes. Não basta que a semente seja boa. Ela
precisa de terra para germinar, brotar e crescer.
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