Monjolos e moinhos

A julgar pelo corpo que temos, somos uma espécie que deveria ter desaparecido da face da Terra milhares de anos atrás. Tudo é desajeitado... Começando pela pele, delicadinha, que não agüenta nem sol nem frio, não pode ser comparada nem com os invejáveis casacos dos ursos ou com as sólidas carapaças ambulantes das tartarugas e tatus. Olhe para suas unhas. Para que servem, além de ajuntar sujeira, crescer e quebrar? Claro que para coçar alguma mordida de carrapato, coisa que tem inegável valor erótico, mas pouco contribui para a sobrevivência. Veja, por contraste, um tatu cavando o seu buraco. Suas unhas são verdadeiras cavadeiras. Ou os gatos e parentes felinos, com unhas-navalha que rasgam o couro mais duro.
As pernas valem também muito pouco. Os prodígios de um João-do-Pulo não podem ser comparados ao cotidiano das pulgas, dos gafanhotos e dos cangurus. E se a questão é correr, qualquer formiga corre mais a pé do que um carro Fórmula Um, guardadas as devidas proporções. Isto tudo, além de sermos aleijados, visto não dispormos de coisas utilíssimas como cascos, o que nos aliviaria de despesas com sapatos, além de nos faltarem rabos e chifres...

Se sobrevivemos foi porque descobrimos maneiras de melhorar o corpo. Fomos, aos poucos, construindo próteses para compensar as faltas, como fazemos dentaduras para substituir os dentes. Sapatos, roupas, chapéus, facas, enxadas, óculos, casas, bicicletas e todas as coisas a que damos o nome de técnica não passam de melhorias e transformações de um corpo desajeitado e fraco, que morreria se entregue às suas modestas possibilidades físicas.
Foi a fraqueza do corpo que acordou a inteligência. O pé que dói por causa de um espinho está pedindo um sapato, o que não aconteceria se dispusesse de um casco. E se corrêssemos como as formigas, é certo que Mr. Henry Ford não teria inventado o automóvel, a não ser que as trombadas entre pedestres se tornassem perigosas por causa da velocidade das pernas, forçando a descoberta de uma geringonça mecânica que nos permitisse andar mais devagar. Nossa força cresceu no lugar da nossa fraqueza. A incompetência biológica convidou a inteligência. E é só por isto que estamos vivos ainda - por causa deste acidente da natureza.
Inteligência: palavra que se presta a confusões. Alguns pensam que é uma coisa que uns têm mais e outros menos. Coisa parecida com gordura e altura. As pessoas seriam gordas ou magras, altas ou baixas, com muita inteligência ou pouca... Os psicólogos até inventaram coisa semelhante a uma balança ou fita métrica para medi-la: o QI.
Ocorre que não é bem assim. Há tipos de inteligência que não podem ser misturados. Até inventei uma historiazinha para ilustrar a questão.

Era uma vez um povo que morava numa montanha, onde havia muitas quedas d'água. Moer o grão nos pilões era uma dureza. Um dia, o moço coberto de suor de tanto trabalhar, olhou para a queda d'água onde se banhava diariamente. E uma idéia o iluminou como um raio: acabava de inventar o monjolo. Foi aquela revolução. Tudo mudou. E logo surgiu um grupo novo de profissionais, mecânicos e especialistas em consertar monjolos. Isto eles faziam melhor que o inventor... Acontece que uma tribo guerreira invadiu a montanha e aquele povo teve de fugir para as planícies a beira-mar. Com muito esforço levaram seus monjolos, indo descobrir que não tinham nenhuma utilidade lá embaixo, já que não havia quedas d'água. Os mecânicos e especialistas perderam o trabalho. E não teve outra saída: voltaram os pilões. O tempo passou. Até que um homem cansado de fazer força viu o vento sacudir as árvores. E, de novo, o milagre aconteceu. Uma iluminação momentânea: nasceu assim o moinho de vento. Nova revolução. Nova classe de mecânicos, especialistas no conserto de moinhos de vento...

Há um tipo de inteligência criadora. Ela inventa o novo e introduz no mundo algo que não existia. Quem inventa não pode ter medo de errar, pois vai se meter em terras desconhecidas, ainda não mapeadas. Há um rompimento com velhas rotinas, o abandono de maneiras de fazer e pensar que a tradição cristaliza. Pense, por exemplo, no milagre do iglu. Como teria acontecido? Compreender que aquele espaço é protegido, que é possível usar o gelo para preservar o calor... Perceber as vantagens estruturais daquela forma de hemisfério. Fazer uso dos materiais disponíveis. Tudo imensamente simples, inteligente, adaptado, eficaz. Nenhuma importação é necessária... A gente encontra o mesmo tipo de inteligência no artista que faz uma obra de arte, no cientista que visualiza na imaginação uma nova teoria científica, no político-sonhador que pensa mundos utópicos, considerados impossíveis pelo mecânico. O criador está convencido de que existe algo de fundamentalmente errado no que existe e que é necessário começar tudo de novo.
Já o mecânico pensa diferente. Tudo está bem. Foi apenas um pequeno defeito. Trocar uma peça, fazer um ajustamento... Trilha velhos caminhos e as necessidades práticas cortaram-lhe as asas da imaginação. Fazer como sempre fez, de acordo com o manual de instruções. Há receitas para tudo. Há respostas certas para tudo.
Claro que estes dois tipos de inteligência se aplicam a situações diferentes. Se o meu monjolo quebrou e a queda d'água está lá, quero mais é que um bom mecânico o conserte. Mas se o monjolo está em perfeito estado e a queda d'água secou, o mecânico não vai servir para nada.

Acontece que a inteligência se parece com sementes. Não basta que a semente seja boa. Ela precisa de terra para germinar, brotar e crescer.
A questão que se coloca é se o nosso sistema educacional, regido pela lógica dos vestibulares, tem lugar para a inteligência criativa... Negativo.
Tudo é preparado como se houvesse somente mecânicos neste mundo. Não há lugar para o desenvolvimento da capacidade de perguntar - o fator mais importante no desenvolvimento da inteligência e da ciência. O aluno aprende que existe sempre uma resposta certa entre as alternativas apresentadas, e que precisa apenas dar a solução para determinada questão preparada por outro.
Se o dano se restringisse à ciência, até que seria suportável. Mas quando a imaginação é castrada, só resta à inteligência trilhar o caminho dos mecânicos. Assim, quando a crise política pede que apareçam visionários utópicos, com idéias novas e criativas, só aparecem os mecânicos tentando consertar o que não tem conserto. Não é esta a essência da crise que nos envolve? Eles tentam fazer funcionar monjolos numa planície onde não existem quedas d'água...


Rubem Alves
Educador e psicanalista
Texto extraído do livro de
Estórias de quem gosta de ensinar, Editora Papirus.

Opiniões e sugestões sobre os artigos?
Envie um email a vercrescer@vercrescer.com.br