Material Paradidático
Pátio Revista Pedagógica

Nº 1 - mai/jul 1997

Inteligência: dimensões e perspectivas


Piaget e a nossa inteligência
Lino de Macedo *

Na visão de Piaget (1896-1980), os seres vivos são todos inteligentes. Como e por que somos inteligentes? Todo o trabalho teórico e experimental de Piaget foi dedicado à análise dessa hipótese.

A inteligência expressa duas condições ou problemas do ser vivo: organização e adaptação em um contexto de constantes transformações. Organização porque, uma vez tornados vivos – isto é, nascidos para a vida –, temos que agir para manter essa condição de totalidade. Doenças, fome, dor, miséria, violência, disfunções, perturbações de todos os tipos, processos degenerativos e a morte – síntese de tudo o que se opõe à vida – estão sempre presentes. A organização vital, aquilo que expressa nossa identidade de ser vivo, será então, para sempre, enquanto não morrermos, um eterno problema: como conhecer o que conserva a vida? Por que certas ações ou certos objetos são bons para a vida e outros, não? A inteligência é aquilo que nos ajudará a encontrar respostas para isso. Ser ou estar vivo é, por isso, ser ou estar inteligente.

A organização expressa a vida como um sistema que, como tal, deve se conservar enquanto todo. Mas esse sistema é aberto. Partes daquilo que nos conserva a vida, como sistema, estão fora de nós, não são, nem poderão ser, produzidas por nós. Por exemplo, ainda que mamíferos, não produzimos o leite que nos alimenta. Não produzimos o ar que alimenta nossas células e tecidos. Não criamos – sozinhos – a língua que nos permite comunicar e, por isso, sobreviver. Não criamos os objetos ou a tecnologia que garantem a nossa subsistência social, cultural e biológica. Dependemos da natureza. Dependemos de outras pessoas, de nossa comunidade. Estamos, pois, fadados à interação, à troca. Temos que nos adaptar, regular nossas necessidades e possibilidades de sobrevivência ao que está fora de nós. E que, mesmo dentro de nós, está sempre em outro lugar: por exemplo, a ‘comida’ do estômago vem da boca; a ‘comida’ do intestino vem do estômago. A inteligência é que nos permitirá efetuar essas trocas vitais. É ela que, na linguagem de Piaget, possibilitará, por mecanismos de assimilação e acomodação, que essas interações possam ser efetuadas e que a vida, em sua expressão biológica, cultural, psicológica e etc., possa, então, continuar sendo. E sendo em suas infinitas e eternas variações, seja na perspectiva de quem quer continuar vivo, seja na perspectiva das coisas de quem ele depende ou que contribuem para isso.

Aceita a noção de inteligência como correspondente ao que possibilita e dá sentido à vida para qualquer ser vivo implica, então, enfrentar uma questão muito importante para nós, seres humanos. Se é assim, por que a violência, a fome, a injustiça, a desigualdade social, a falta de vontade de aprender ou ensinar, a inveja, o ciúme, o medo, a destruição pela droga, a destruição pelo comer ou trabalhar compulsivos, a desintegração grupal, a destruição da natureza e tantas outras coisas? Por que tantas formas – não inteligentes – destrutivas da vida? Por que tanta insensatez? Por que ainda não tomamos consciência, ainda não aprendemos a suportar e a desfrutar a beleza da vida? Talvez porque ainda não saibamos coordenar a possibilidade ou necessidade da vida com sua impossibilidade e a precariedade ou delicadeza do que lhe dá sentido. Talvez porque ainda não tenhamos podido articular os limites de sua extensão, quando considerada de forma particular e individual, com a amplitude de sua compreensão, quando considerada em termos gerais e coletivos. Talvez porque ainda não tenhamos podido compreender e praticar, no nível hoje exigido pela complexidade de nossa forma de vida, os dois elementos fundamentais de nossa inteligência ou de nossa vida: sua condição independente e reversível, isto é, operatória. Para analisar o que é isso, na perspectiva de Piaget, e para sair um pouco de considerações tão gerais e abstratas, vou me servir de um problema bem conhecido por muitos de nós

Problema

Um lobo, uma ovelha e um pacote de couve estão na margem esquerda de um rio . O barqueiro deve transferi-los para a margem direita, mas, como seu barco é pequeno, só pode transportar um deles por vez. Além disso, sabe-se que o lobo gosta de comer ovelhas e que as ovelhas gostam de comer couves. Essas, no entanto, não comem nem lobos nem ovelhas. Nosso problema é, então, propor ao barqueiro um plano de viagem em que, dadas as restrições, ovelha, lobo e couve passem a margem direita intactos. A solução como todos sabem é a seguinte:

1.o barqueiro transporta primeiro a ovelha para a margem direita;

2. retorna sozinho para a margem esquerda;

3. transporta o lobo para a margem direita1;

4. retorna para a margem esquerda trazendo a ovelha;

5. transporta a couve para a margem direita;

6. retorna sozinho para a margem esquerda;

7. transporta finalmente a ovelha para a margem direita.

Esse problema, tantas vezes proposto e resolvido por crianças e adultos, possibilita-nos analisar as características de uma inteligência operatória na perspectiva de Piaget. Essas características são, pelo menos, duas: interdependência e reversibilidade.

Interdependência. Interdependência refere-se , na teoria de Piaget, a uma qualidade da relação entre as partes e o todo que lhe corresponde. Para resolver o problema devemos considerar todo o conjunto da situação: as regras do jogo (transportar só um objeto por vez, etc.), as incompatibilidades (o lobo come a ovelha; a ovelha come a couve), as compatibilidades (o lobo convive com a couve). Ou seja, há uma multiplicidade de fatores a considerar o tempo todo. É isso que nos obriga, do ponto de vista do conjunto, a transportar a ovelha em primeiro lugar. Do ponto de vista exclusivamente desta, ela vai em último lugar. Ou seja, cada parte (regras, objetos, restrições) tem uma autonomia em relação às outras, isto é, devem ser consideradas por si mesmas. Ao mesmo tempo, cada parte deve ser coordenada com as outras e, simultaneamente, com o todo que as integra. Para uma criança, por exemplo, levar a ovelha na primeira viagem e trazê-la na quarta não faz sentido do ponto de vista da ovelha e, inclusive, da tarefa proposta. Aliás, esse problema é tido como fácil e imediatamente resolvido por muitas crianças, que imaginam serem necessárias apenas três viagens: uma para levar a ovelha, uma para o lobo e outra para a couve! Quando propomos que resolvam o problema concretamente e lhes lembramos as regras, crianças com menos de 10 anos geralmente deparam com tantas contradições e impossibilidades que supõem ser impossível resolver o problema. Não compreendem, por exemplo, essa estranha situação: a ovelha é a primeira a viajar, mas é a última a ser transportada de modo definitivo. Mas nós sabemos por que: a ovelha deve ser transportada primeiro em nome do todo, porque isso nos permite isolar a ovelha do lobo ou da couve na terceira viagem. No primeiro momento, a ovelha, portanto, não viaja por si mesma, mas pelo conjunto ao qual ela pertence.

Apesar de não ser o objetivo do texto, não resisto em lembrar de passagem a importância atual da noção de interdependência como categoria descritiva de uma nova "ordem" mundial. Essa categoria lembra-nos da necessidade de interação, com qualidade independente, entre pessoas e grupos: nas relações políticas, comerciais, científicas e tecnológicas (nas trocas pela informática, por exemplo). Mas lembra-nos também do quanto essa qualidade tem sido, em nome da independência, pervertida. Globalização e codependência são, talvez, dois exemplos marcantes disso.

A independência evita que, como na vida, tentemos resolver o problema por ensaio e erro, ou seja, corrigindo a posteriori, primeiro agindo e depois sofrendo as conseqüências de nossa ação. É ela quem, nos processos de desenvolvimento, possibilita-nos, pouco a pouco, não mais agir ou pensar de modo indiferenciado, justaposto ou sincrético. Indiferenciado porque não sabe ordenar as ações, isto é, porque não sabe organizá-las no espaço e no tempo de sua realização. Justaposto porque trata – em paralelo e de modo dissociado – dos objetos e dos acontecimentos. Ou seja, quando pensamos na ovelha, nos ‘esquecemos’ da couve e de do lobo. Ou, ao contrário, agimos de forma sincrética: por querermos juntar tudo, deparamos com uma situação impossível, porque sem solução.

Reversibilidade. A reversibilidade pode ser entendida como um coordenador de uma independência, com qualidade construtiva. Faltando ela ou seus equivalentes (respeito mútuo, autonomia, etc.), a independência, como comentamos, transforma-se em outra coisa. A reversibilidade caracteriza a possibilidade mental, corporal ou social de se considerar as relações entre as partes e entre as partes e o todo de modo simultâneo. Não sabemos, sobre muitas coisas, pensar ou agir de modo simultâneo, ou seja, atentos ao mesmo tempo para a parte (aquilo sobre o que estamos concentrados) e para o todo (a multiplicidade de tudo que deve ser igualmente considerado). Aprendemos, nesses últimos séculos, a valorizar a tarefa realizada de modo sucessivo e exclusivo. A inteligência, na perspectiva de Piaget, ao contrário, pede coordenação de pontos de vista. Prioridade é uma coisa. Exclusividade é outra.

A reversibilidade, como qualidade de um pensamento operatório, é a que cria a necessidade de considerarmos simultaneamente todos os fatores em jogo no problema que nos serve de ilustração. É ela que nos permite compreender a necessidade de primeiro transportar a ovelha, para que depois possamos transportar sem dificuldades a couve e o lobo. Além disso, é a reversibilidade que nos permite compreender que tanto faz transportar o lobo ou a couve, pois há uma reciprocidade entre as duas situações. É por ela que podemos fazer "viagens mentais" antes de decidirmos concretamente pela indicação efetiva dos transportes a serem feitos.

É pela qualidade coordenadora da reversibilidade que as viagens não são realizadas de modo arbitrário. Transportar primeiro a ovelha é uma necessidade, ou seja, é a única possibilidade para a primeira viagem, dadas as restrições do problema. Não se trata, portanto, de um capricho nem de uma mera subordinação. Trata-se de uma conclusão, de poder interpretar e decidir qual é o melhor procedimento para um resultado desejado em função do objetivo (transportar intactas as três "mercadorias" no menor número de viagens). Na terceira viagem, pode-se transportar o lobo ou a couve, há duas possibilidades. Em cada viagem, nada é arbitrário, mas igualmente há abertura para as possibilidades ou opções. Em outras palavras, descobrir as impossibilidades, considerar as contingências, não sendo determinado por elas, e valorizar os possíveis e o necessário em cada situação são condições para uma ação operatória. Por isso, a ação operatória é flexível. É rigorosa, mas não rígida. É aberta, mas não comprometida.

É pela reversibilidade como qualidade construtiva (relacional, dialética) que caracteriza uma inteligência operatória que podemos ligar passado, presente e futuro, dirigindo nossas ações pelo projeto que as determina. O passado, em uma inteligência de qualidade operatória, corresponde a um pensar e a um agir históricos, que não esquece o que não pode ser esquecido – no presente ou no futuro. Em um passado que, por ser sempre atualizado, não é esquecido, nem se manifesta apenas como queixa (por aquilo que não deveria ter sido ou que gostaríamos que tivesse sido) ou como repetição (isto é, condenação). Essa qualidade de inteligência é retrospectiva porque, por exemplo, em cada viagem, todas as anteriores devem ser consideradas. Se o lobo foi transportado na terceira viagem, é a couve que será transportada na quinta viagem. Ora, nosso exemplo nos ensina que, até que alcancemos uma solução operatória para o problema, muitas ovelhas e couves serão "comidas" e que o lobo reinará com independência e arrogância, esquecido de que até ele faz parte de um todo e que deve aprender a interagir com ele, conforme qualidades aqui analisadas.

O futuro, em uma inteligência operatória, expressa-se pela antecipação, por efetuar as viagens, primeiro, no pensamento. Por poder criticar as hipóteses sugeridas por nossa reflexão. Por poder inferir resultados bons e ruins para o objetivo proposto pelo problema. Por poder planejar e decidir as melhores ações antes de realizá-las concretamente.

 

Considerações finais

 

Considerar vida e morte, saúde e doença, conhecimento e ignorância, prazer e dor, felicidade e tristeza, etc., como formas independentes e reversíveis é muito importante. Possibilita-nos tratar coisas opostas como indissociáveis, complementares e irredutíveis. Possibilita, pela qualidade operatória de nossa inteligência, que nos diferenciemos e integremos como seres vivos e humanos.

Para Piaget, qualquer ação (física ou mental) tem como direção a qualidade construtiva, independente e reversível de realização. Mas aceitar essa direção supõe compreender duas condições:

 

1. Em condições iguais, qualquer ser humano está orientado para essa forma de ação. Se o sentido dessa orientação é, por vezes, indesejável, isso se dá porque nem sempre as condições são iguais. Injustiça, doença, morte, violência e tantas outras formas de exclusão estão aí para nos provar isso. Como combater, prevenir, evitar, aceitar cada uma dessas formas que nos tiram ou nos excluem dos processos de desenvolvimento ou de vida?

2. Uma qualidade operatória está presente em todos os níveis de desenvolvimento. Está presente, por exemplo, na inteligência prática ou sensório-motora de uma criança no primeiro ano de vida, quando, por exemplo, ela "escolhe" dentre seus esquemas de ação qual deles vai utilizar em suas muitas interações com sua mãe, com outras pessoas, com objetos; quando a criança dessa idade usa um esquema como meio para alcançar outros esquemas (levantar um objeto para colocá-lo na boca e, assim, poder chupá-lo). Está presente na criança mais velha, agora freqüentando a Escola de Educação Infantil, quando aprende regras de convivência social, quando brinca e inventa, isto é, mitifica o mundo, quando formula perguntas, quando faz comparações. Está presente na escola de 1º grau quando a possibilita à criança aprender Português e Matemática, etc. Em todos os níveis de desenvolvimento humano podemos encontrar formas construtivas, porque interdependentes e reversíveis, de inteligência.

 

Alguém poderá julgar que Piaget foi duplamente otimista ou ingênuo defendendo as condições aqui discutidas. Primeiro, por julgar que os seres humanos teriam a mesma força de vida que os outros seres da natureza. Segundo, por não considerar – em suas pesquisas e reflexões – o fato de muitos seres humanos, em diferentes momentos de sua vida e por diferentes fatores, não desejarem aceitar como problema sua necessidade e suas possibilidades de se desenvolverem como seres vivos. Piaget optou por estudar aquilo que era operatório em nossa inteligência, por mais que soubesse – e que, ao seu modo, combatesse – nossa insensatez e, em alguns momentos, nossa compulsão para formas não construtivas de existir e de compartilhar nossa existência com todos os outros.

Nota

1 Dá no mesmo se o barqueiro transportar a couve no lugar do lobo. Neste caso, a viagem 5 é o lobo, e não a couve, que será depois transportado para a margem direita

* Lino de Macedo é diretor do Instituto de Psicologia da USP e professor titular do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade da USP


Fonte:

MACEDO, Lino de. Piaget e a nossa inteligência. Pátio Revista Pedagógica. Porto Alegre: Artes Médicas Sul. v.1, n.1, mai/jul 1997.


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Última atualização em 17/11/98